A revolta dos anjos foi a raiz de toda a iniquidade, aquela, como veremos, que se deverá revelar e ser proposta de forma explícita ao homem, no final da sua vida.
Recordemos a história dos anjos e a origem dos demônios, esses anjos que se tornaram maus.
A História dos Anjos desde a Criação
Os anjos nunca tiveram corpo. São puros espíritos. Para nós, é muito difícil compreender verdadeiramente o que pode ser e como pode viver, uma pessoa que não tem corpo.
Assim, ao longo de todo este trabalho, tomamos o partido de falar deles em termos antropomórficos. Trata-se, bem entendido, de uma linguagem analógica.
No primeiro instante da sua criação, criação que precedeu a dos homens, todos os anjos eram bons. O maior deles, Lúcifer, pela beleza do seu ser era a obra-prima de Deus.
Os outros anjos não sentiam inveja. Bem pelo contrário, ao contemplarem-lhe a perfeição, conseguiam fazer uma ideia da infinita grandeza do Deus escondido que acabava de os criar.
Todos os anjos amavam Deus, afirma S. Tomás de Aquino. Não sentiam senão reconhecimento pelo que acabavam de receber da sua mão, a existência, a vida, a beleza.
Este espectáculo da criação, fazia com que clamassem a uma só voz: “Glória a Deus nas alturas”.
Se o amavam, no entanto, não o podiam conhecer senão de longe. Mesmo para o mais inteligente dos anjos, Deus permanece o Mistério por excelência.
A inteligência dos espíritos celestes bem pode ser superior à nossa, mas permanece limitada. Como é que um vaso finito (o anjo) poderia conter o Infinito (Deus)?
Limitavam-se, pois, a conhecer Deus através dos efeitos do seu poder. Ao olharem-se a si mesmos, ao olharem os outros anjos, viam como num espelho o reflexo longínquo do Criador.
E esta vida pacífica e contemplativa, agradava-lhes. O mundo poderia ter ficado assim para a eternidade.
No entanto, quando a criação era ainda completamente nova, Deus falou: Trata-se de um pensamento, de uma revelação transmitida directamente à inteligência de cada anjo.
A Prova de Fidelidade
Para melhor manifestar a Boa Nova que anunciou aos anjos, vamos decompô-la em três palavras distintas:
1 – Deus disse: “Criei-vos para que me vejais face a face.” Esta primeira revelação é perturbadora para um anjo, bem mais que para um homem, porque o anjo tem a capacidade de lhe captar de imediato todo o alcance.
Ver Deus face a face, significa para eles o impensável. Era-lhes impossível esperar uma tal felicidade. Sabiam, bem mais do que nós, a infinita profundidade do mistério divino e o limite das suas capacidades intelectuais.
Ver Deus face a face, isso significa compreender o seu Mistério com o próprio olhar com que Deus se compreende. Ora, tal coisa é impossível. Não obstante, as legiões angélicas tinham ouvido bem.
Acreditaram, pois, aderiram a esta palavra de Deus, apesar do seu carácter impensável, sabendo que nada é impossível a Deus.
Lúcifer foi o primeiro a acreditar. Com ele, os querubins, os serafins e todas as ordens celestes, desejaram ver realizar-se esta promessa. Esta adesão chama-se fé.
Mas já neste primeiro instante, Deus sabia que Lúcifer acreditava por outro motivo que o pequeno arcanjo Miguel.
2 – Então Deus falou mais uma vez: “Eu sou manso e humilde de coração. Ninguém me pode ver face a face se não for todo amor e humildade.”
Os anjos sabiam, através da contemplação natural, que Deus não os podia ter criado senão por amor. Mas descobrem estupefactos, naquele instante, que Deus é amor.
A contemplação natural convidava-os antes a admirar, em primeiro lugar, a inteligência do Criador, a sua luz.
O mundo angélico parecia-lhes mais beleza que bondade. Pela sua palavra, Deus convidou-os a inverter inteiramente as suas concepções habituais.
Quando Deus afirma que é amor, antes de tudo, quando o Todo-Poderoso revela que se considera como o servo de todos (humildade), manifesta que a perfeição natural dos Querubins não é nada a seus olhos, comparada ao amor.
A sua ordem de preferência não é a que dá a nobreza, mas a que dá o coração. Pede-lhes uma conversão total. Ser amor é a condição necessária para toda a entrada na visão beatífica.
Aqui se situa a prova terrível para os anjos: renunciar a si mesmos. Já é difícil para um ser humano, que todos os dias é confrontado com as suas imperfeições. Ainda mais o é para um puro espírito, imagem perfeita da perfeição de Deus.
O orgulho é um defeito mais próximo dos anjos que dos homens.
Esta abnegação, dissemo-lo, é indispensável porque a vida proposta é sobrenatural.
3 – Uma terceira palavra foi pronunciada: “Depois de vós, vou criar pequenos seres ligados a um corpo de carne. Homem e mulher os farei. Terão filhos. Vós sereis para eles anjos da guarda. Vós os conduzireis a mim.”
Esta revelação foi extremamente concreta, tão concreta que tinha o poder de distinguir quem, de entre os anjos, era humilde, e quem não era.
A Bíblia diz: “Deus separou a luz das trevas.” Esta simples frase mostra-nos que se deu uma separação exterior entre a presunção de uns e o amor de outros.
Houve uma cisão no céu angélico. É o conteúdo desta revelação primeira que provocou este primeiro drama da criação, o mistério primeiro de iniquidade, mesmo no mundo dos humanos.
A Cisão dos Anjos
Esta revelação, à maneira de um relâmpago fulgurante, deixou o céu inteiro silencioso e, no instante seguinte, um desses instantes celestes que mede o pensamento dos anjos, uma voz gritou: “não servirei!”
O mais belo de todos, Lúcifer, tinha falado, passando a ser para sempre Satanás. Lúcifer era o maior dos anjos, quer dizer, o mais poderoso do ponto de vista intelectual, o mais próximo de Deus pela sua perfeição espiritual.
Lúcifer ama Deus. Seria aberrante afirmar que os anjos querem mal ao Criador, a quem sabem dever tudo.
Apenas o homem é capaz de odiar Deus porque não o conhece e julga-o muitas vezes, pelos efeitos da sua providência.
O homem age muitas vezes como uma criança que, tendo sido repreendida pela mãe, está terrivelmente zangada com ela.
Esta criança ainda não é capaz de compreender que foi o amor que fez com que a mãe agisse assim. O anjo está para além destes raciocínios infantis.
O problema de Lúcifer é que amava Deus à sua maneira. Via nele o ponto mais elevado de todo o universo, diante de quem todo o joelho se dobra, e nisso, tinha o sentido da honra de Deus e do seu estatuto.
Tinha, sobretudo, deste esse instante primeiro, o sentido da sua dignidade própria, Lúcifer, do seu lugar de chefe de todos os anjos.
A ordem primeira, instaurada por Deus no início da criação e baseada no poder espiritual, dava-lhe o primeiro lugar depois de Deus, primeiro lugar que lhe convinha perfeitamente.
Lúcifer não estava contra a criação de seres humanos, esses espíritos limitados e débeis ligados a corpos materiais, na condição, no entanto, que estivessem, na hierarquia dos seres do universo, abaixo dos anjos, apenas acima dos animais.
Mas compreendia que seria de outra forma. A ordem que agradava a Deus não era, no fim de contas, aquela que confere os títulos de nobreza intelectual, mas a que confere a humildade, a pequenez e, sobretudo, a capacidade de amar.
Ora, nessa ordem, o homem e a mulher eram criaturas mais bem construídas para triunfar.
Com efeito, um anjo, que é uma inteligência pura, ama na medida em que compreendeu que algo é digno de ser amado.
Amar para ele, significa “querer unir-se ao que compreendeu ser um bem”.
O homem, ao invés, com a sua inteligência limitada e incapaz de se exercer sem a ajuda do cérebro, tem a capacidade de amar sem mesmo compreender.
Pode amar o seu Deus com uma fé e uma confiança cegas. Isso é o que tem de melhor nele, o homem pode amar um amigo até dar a vida por ele, portanto, para além do que é lógico.
É esta forma de amar que agrada ao Todo-Poderoso, ao ponto que, quanto mais encontra diante dele um ser deste tipo, mais se dá a ele e o estabelece no alto da hierarquia dos seres.
Lúcifer perscrutava, em pensamento, a natureza humana. Via nela o homem e a mulher.
O homem com a sua psicologia masculina, inclinado a compreender o mundo, a transformá-lo, e a mulher com a sua psicologia mais inclinada a compreender as coisas com o coração do que a analisá-las, mais inclinada a amar.
Por causa disso, mais do que o homem, a mulher obcecava-o.
O projecto de Deus surgiu-lhe então em plena luz, com as consequências terríveis para o seu orgulho.
Ele, Lúcifer, e todos os espíritos celestes com ele, os Querubins, os Serafins e os Tronos, as Dominações, as Virtudes, as Potestades, os Principados, os Arcanjos e os Anjos, eram chamados por Deus a baixarem-se a servir esses seres de lama e ossos, a protegê-los e a conduzi-los, durante o período da sua permanência na terra, para que se tornassem, no fim de contas, maiores que eles.
A Revolta e Inveja de Lúcifer
Então, Lúcifer, foi tomado de inveja. Mais do que pelo homem, foi tomado por uma hostilidade contra a mulher e proclamou à face do céu: “Não servirei”.
Tornou-se num instante, de uma forma perfeitamente lúcida, o arauto da defesa dos “direitos” de Deus e da defesa do lugar hierárquico dos anjos.
Proclamou a sua revolta, um pouco (salvaguardando as devidas proporções) à maneira de S. Pedro, antes da paixão de Jesus: “Tu és mestre e Senhor, não me lavarás os pés”.
Também Pedro teve o sentido do lugar de Jesus mas, contrariamente a Lúcifer, soube calar-se quando Jesus lhe respondeu: “Se não te lavar os pés, não terás parte comigo”.
Lúcifer, sendo o mais espiritual dos anjos, teve, pelos seus argumentos, uma influência terrível sobre o resto do Céu.
A Bíblia diz que o dragão vermelho de fogo (cor que simboliza sua cólera) varreu um terço das estrelas do céu.
Este número não é para tomar no sentido literal, mas manifesta, mesmo assim, que os demônios são numerosos (um terço dos anjos).
A sua influência foi proveniente, sem dúvida, da nobreza dos seus argumentos. Pretendeu não agir senão para o bem de Deus.
O seu argumento teria tido ainda mais peso se, como pensam certos teólogos, os anjos tivessem sabido, desde o primeiro momento, do projeto da encarnação do Filho de Deus, em Jesus Cristo.
Tal projeto não pode ser senão escandaloso aos olhos dos espíritos puros.
A Batalha no Céu – Surge Miguel “QUEM COMO DEUS!“
Lúcifer foi verdadeiramente o defensor dos direitos de Deus? O seu amor por ele foi verdadeiramente a razão da sua revolta?
Muitos anjos não se deixaram enganar (dois terços, se tomarmos à letra os textos).
O Apocalipse diz assim:“Então, uma batalha travou-se no céu: Miguel e os seus anjos combateram o dragão. E o dragão foi contra eles, apoiado pelos seus anjos, mas foram vencidos e expulsos do Céu.”
Este combate não se fez com espadas de aço, mas com a espada da verdade.
Um simples arcanjo, quer dizer, um espírito das hierarquias mais inferiores, foi o primeiro a denunciar a mentira de Satanás, um Querubim resplandecente: “Não é por Deus que lutas, mas por ti. Se amasses Deus verdadeiramente, obedecerias à sua vontade. O que te importa é seres o primeiro. Foi o orgulho que te cegou. Mas, quem é como Deus!” Miguel, por esta palavra de verdade, arrastou atrás de si aqueles que Lúcifer não pôde seduzir.
A Bíblia não pára de confirmar este orgulho primitivo de Lúcifer, que o soube tão bem camuflar em grandeza de sentimentos.
Isaías, falando dele, declara: “Como caíste do céu, estrela da manhã, filho da aurora? Como foste lançado à terra, vencedor das nações? Tu que tinhas dito no teu coração: subirei aos céus, acima das estrelas de Deus elevarei o meu trono. Serei igual ao Altíssimo”.
Quanto a Jesus, não hesita afirmar que Satanás foi mentiroso desde o princípio. Ele foi o príncipe da mentira. Com efeito, não há maior mentira que chamar bem àquilo que é mal.
Depois da Batalha, o que aconteceu aos anjos desde o esplendor da sua criação e desde a queda de alguns deles?
Foram divididos em dois grupos, segundo a escolha que fizeram de servir ou lutar contra o projeto de Deus.
Os anjos bons foram imediatamente introduzidos na visão de Deus e, desde esse dia como hoje, jamais a deixam.
Os anjos maus separaram-se de Deus, e Jesus afirmou que a sua ruptura não cessará jamais.
Lúcifer e os seus anjos estão condenados para a eternidade. Alguns cristãos pensam que a eternidade do inferno é contraditória com a bondade de Deus.
Pensam que Deus, um dia, perdoará o pecado a Lúcifer e tomá-lo-á com ele.
Falam assim porque compreendem mal o mistério do inferno, a saber, de uma forma terrestre e demasiado humana.
O homem, enquanto estiver na terra, pode sempre voltar atrás quanto aos seus pecados.
Deus recebe-o e perdoa-lhe. O anjo, quanto a ele, é demasiado inteligente para estar submetido a estas reviravoltas da vontade.
Quando um anjo escolhe, sabe o que escolhe. Num instante, pesa os prós e os contra, e a sua inteligência, como uma lâmina cortante, não deixa nada no vago.
O Orgulho que não permite perdão
Lúcifer e os seus anjos sabiam o que era o inferno, esse vazio de Deus.
O inferno não lhes pareceu um mal tão terrível face à perda desse outro bem que puseram no lugar supremo do coração: o primeiro lugar.
Deus bem poderia infinitamente perdoar a Lúcifer, este responderia indefinidamente “tenho razão”.
Eis o combate que se esconde sob a denominação de “mistério de iniquidade”. As suas consequências sobre a humanidade são fáceis de deduzir.
O Que Fazem Agora os Demônios?
A Bíblia afirma que foram precipitados na terra. Esta frase misteriosa significa que a sua única obsessão, o objectivo de toda a sua atividade, é o homem.
Os demônios, lógicos com a sua escolha original, não desejam mais que destruir o homem, sobretudo no plano espiritual.
O seu inimigo principal é tudo quanto lembra, de perto ou de longe, a humildade ou o amor generoso.
Se conseguissem que o homem, essa suposta obra-prima, se juntasse lucidamente à sua revolta, a sua vitória parecer-lhes-ia completa.
Esperam, desta forma, demonstrar a Deus o seu erro grosseiro, a estupidez dos seus planos.
Desejariam obter, revoltando a humanidade inteira contra o criador, o restabelecimento da antiga ordem que lhes agradava, a ordem da nobreza, baseada nos direitos da natureza.
Pensam poder conseguir que Deus se vergue, faze-lo desistir dessa sua história de humildade e de amor.
Deus deixa a Lúcifer e aos seus demónios uma certa latitude para agirem de forma, por vezes, muito concreta, junto dos homens.
Na sua limpidez, Deus sabia que as propostas falaciosas, as tentações, permitiriam àqueles que o amam, escolhe-lo mais livremente.
Os demônios e as suas velhacarias tornaram-se, pois, sem mesmo o suspeitarem, servidores do plano de Deus para a vida eterna dos homens.
ESTE É UM TRECHO DO LIVRO “A HORA DA MORTE” DO TEÓLOGO FRANCÊS ARNAUD DUMOUCH.